Vocalista da banda UHF
UHF – “Porquê?”
Mais de três décadas após o início deste projecto, nem mesmo na mente mais positiva do jovem António Manuel Ribeiro se poderia adivinhar este percurso.
Três décadas de luta por condições dignas para se exercer a profissão de músico em Portugal, milhares de palcos percorridos em todos os recantos deste país e também lá por fora. Os palcos partilhados com nomes enormes do panorama musical mundial, como os Ramones, etc. Milhares de discos vendidos. Canções que se tornaram tesouros da musica deste país. A aparente inexplicável chegada de novos fãs, num contágio crescente de interesse das novas gerações. As novas bandas a prestar tributo, tocando as suas canções. A sensação de que um concerto dos UHF é um pouco mais do que apenas mais um concerto, é uma celebração.
Trinta e dois anos após a reunião da banda, UHF é nome grande, enorme, daquilo que se convencionou chamar Rock português.
Como se explica então, que tanta gente continue a ser tocada no seu íntimo pelas palavras e pela música de António Manuel Ribeiro? Vamos saber…
Em 2010, um novo disco de originais, chamado “Porquê?”
Possivelmente o mais político disco dos UHF. Na sua estrutura, quase se parece com um manifesto geracional. A geração dos ofendidos por uma classe dirigente conivente com o poder financeiro, que relega as pessoas para um simples papel de marionetas numa peça para a qual não contam e com final anunciado.
Um disco sem concessões e sem rodriguinhos bacocos, directo e honesto, feito sem amarras. Esta obra maior, na já longa carreira dos UHF está condenado a figurar nas listas dos melhores deste ano. Tal como no início da banda, em finais dos anos 70, também agora os tempos não são fáceis. É nestas alturas que é necessário que se levantem as vozes, que se despertem as consciências.
Discos como este, são autênticos balões de oxigénio contra a descrença. As suas 12 canções puxam para cima, como AMR bem referiu no show case da FNAC de Almada, em dia de apresentação do disco.
Numa tarde de sol, e a pretexto de um concerto em formato unplugged no auditório do Centro Cultural Malaposta em Odivelas, enquanto aguardava por António Manuel Ribeiro para a conversa combinada, tive a agradável surpresa de ver surgir mais dois UHF’s, António Corte-Real (guitarra) e Nando (baixo) para ajudar a descortinar o que esta banda tem feito e quais as novidades prometidas para um futuro próximo. A conversa que tivemos passou em revista um pouco da história da banda, falou sobre o novo disco e deambulou sobre as deliciosas histórias de estrada desta banda, algumas dessas histórias, nunca antes contadas em público.
J.D. – São passados cerca de 30 anos desde o início da sua banda de sempre, os UHF. O que é que resta no homem que é hoje o António Manuel Ribeiro dos tempos do jovem que iniciou a banda?
A.M.R. – Bem, hoje sou uma pessoa consciente daquilo que faço, e sei o que estou a fazer, atravessei esta aventura toda, calcorreando vários caminhos e descobrindo que a minha vida não é aquilo que pensava no inicio, uma experiência, tipo agora estou aqui uns anos e daqui a uns tempos isto acaba… acho que na altura a ideia era essa… naquele tempo perguntavam-me o que é que fazia para além da música e eu respondia sempre… sou músico e essas pessoas voltavam a perguntar, sim, mas fazes o quê para além da música… e portanto com este tempo todo segurei, afirmei a mim próprio, consolidei em mim, uma natureza que é esta, sou um artista, sou um criador musical e isto não é uma capa, foi uma decisão que aos longo dos tempos construí.
J.D. – Os UHF quando começaram em finais dos anos 70, os tempos eram complicados para quem perseguia o sonho de ser músico, para quem ambiciona comprar uma guitarra. Considera que existem algumas analogias entre a situação actual e a que se verificava anteriormente, quando começou?
A.M.R. – Eu não gosto muito dos queixumes nem das tragédias, nem me adianta nada falar sobre a tragédia, gosto é de resolver a tragédia e avançar. Para mim este momento é mais fácil e porquê? porque eu já vivi duas crises neste país. Eu sei que esta é uma crise muito profunda, mas agora eu entendo melhor o que está a acontecer e já entendo melhor o que poderá vir a acontecer, o que este país se poderá vir a tornar, claro que poderão acontecer factores imprevistos.
Algo pode acontecer que não esteja nos parâmetros de quem já viveu duas crises… sabes, este país vive de crises disfarçadas e também de crises que já não se podem disfarçar, agora em relação a comprar um instrumento, é muito mais fácil neste momento. Lembro-me que na altura, quando se queria comprar um aparelhito, uma coisa ranhosa, um combo de guitarra de 50 watts ou assim, tínhamos primeiro de ter alguém na família com o dinheiro necessário para comprar o aparelho, depois íamos a uma casa comercial com carimbo e esse familiar tinha de carimbar as letras e nós íamos ao banco e pagávamos juros altíssimos…enfim era um processo confuso, difícil e muito oneroso…queres tocar guitarra? Pagas! O país estava um bocado absorvido pela noção de que quem não tivesse um trabalhinho das nove às cinco era um marginal e nós éramos olhados precisamente como marginais…Agora é realmente fácil, qualquer miúdo pode ter acesso ao leasing, e torna-se mais fácil o acesso aos instrumentos.
J.D. – Nas plateias dos seus concertos, verifica-se uma diversidade enorme de idades entre o público. Como explica que tanta gente de diferentes idades se sinta tocada pela mensagem das suas canções, ao longo de 30 anos?
A.M.R.– Eu posso-te dar uma interpretação pessoal sobre isso, mas será de certeza uma interpretação redutora… haverá outras ideias sobre a matéria, mas há muitos anos atrás eu vi escrito na imprensa várias coisas. Li que não iríamos durar 5 minutos, li sobre o meu funeral e li também “epá… estes gajos são coerentes… que chatice”. Eu acho que hoje em dia estamos a colher os frutos daquilo que fizemos e acho que esta via independente e muitas vezes este afastar das luzes, mantendo o mesmo caminho, continuando a dar espectáculos fantásticos no país todo, a maior parte das vezes não se sabe em Lisboa… e perguntam-me onde tenho andado… e eu respondo, olha, estive a tocar para 15 mil pessoas. Aonde? Olha, anda ver no mapa e aponto lá… mas estavam 15 mil pessoas? Estavam… e isto é uma constante, para além disso existe essa tal coerência que falavam no jornal, a coerência naquilo que fazemos e naquilo que nós defendemos enquanto pessoas.
J.D. – Será por isso que os fãs vos defendem e se identificam tanto com a banda?
A.M.R. – Eu acho que a controvérsia, como muitas coisas na vida, é factor de acrescento e de avanço. Quando existe uma acalmia de ideias, pode surgir a ditadura do vazio.
J.D. – Falemos agora um pouco do vosso último disco “Porquê?”. Gostava de lhe dizer que já ouvi diversos adjectivos para o classificar, desde: Revolucionário, Político ou mesmo Resistente. Fazem sentido para si, algum destes adjectivos politizados, para explicar o conteúdo do trabalho? Quero desde já dizer-lhe que também já ouvi chamar-lhe um disco sobre o amor…
A.M.R. – É acima de tudo um disco sobre o momento actual. É um disco de intervenção. É a posição que nós enquanto artistas tomamos neste momento. Não representamos nenhum partido ou corrente ideológica, isto é uma síntese, nós representamos as pessoas, os portugueses. Nós falamos com as pessoas de norte a sul e o que fica no fim depois de todas as discussões e sobretudo, depois de todos os choques que não conduzem a soluções, há uma pergunta que subsiste… porquê? Eu estou farto de explicações que não têm lógica nenhuma, estou farto de promessas, não passam de promessas e vejo Portugal continuamente na cauda da Europa e neste momento não preciso de políticos que prometam arrumar a casa, não preciso, preciso de políticos que arrumem a casa. Portugal tem problemas graves que a mera politica politiqueira de todos os dias, tem conduzido Portugal para a cauda da Europa. Eu não gosto de estar na cauda da Europa, é só isso.
J.D. – Considera que a musica portuguesa actual questiona pouco? Discos como “Porquê?” podem ajudar a lançar o debate ou a levar as pessoas a participar um pouco mais?
A.M.R. – Acho que sim. Há correntes anglo-saxónicas introduzidas na música portuguesa que não acrescentam muito às ideias. São opções perfeitamente defensáveis, mas eu gosto de falar para os portugueses sobre aquilo que são coisas concretas e este disco é muito concreto. Nós sempre fomos um grupo de intervenção e provavelmente a primeira canção de intervenção que escrevemos foi “Jorge Morreu”…um caso social sobre drogas duras, um amigo nosso que morre em condições trágicas. Desde esse dia até hoje sempre tivemos canções assim e mesmo os “Cavalos de Corrida” são um foco sobre aquilo que é a nossa vida nas grandes cidades, temos canções como “Sarajevo” ou “Soldadinhos de Brincar” do disco anterior, tanta coisa que nós gravámos com um cariz de intervenção grande. Neste disco isso nota-se mais, é um trabalho mais denso, porque é esse o meu espírito, o espírito de um português que está farto daquilo que me têm vendido ao longo dos últimos anos.
J.D. – As pessoas estão acomodadas?
A.M.R. – As pessoas estão entretidas e também têm medo. Nós corremos dois riscos com este disco. O risco do disco não ser entendido ou de passar ao lado das pessoas. Nós não estamos a fazer noticiários com este disco, estamos a falar de coisas que nos tocam a nós, a todos nós. O caso concreto da canção “Cai o Carmo e a Trindade”, fala do estado da justiça. Toda a gente se queixa, todos os governos nos dizem que vão reformar a justiça e todos os governos fazem sempre um jeitinho à justiça conforme as suas clientelas pedem e isso não é uma reforma de justiça que interessa a uma nação, isso é uma reforma de justiça que interessa a grupos.
J.D. – Como surgiu a ideia de regravar “O vento mudou”, canção vencedora do Festival RTP da Canção em 1967, um original de Eduardo Nascimento (música de Nuno Nazareth Fernandes e letra de João Magalhães Pereira)? Foi por ser uma canção que anuncia uma mudança?
A.M.R – Sabes, essa canção pode ter diversas leituras, essa e muitas outras. Ouvi ao longo dos anos tantas explicações sobre essa canção. Durante o processo de gravação também deixámos fluir, não falámos sobre isso. Aquilo que eu gostei foi da canção. Muitas vezes temos necessidade de chamar nomes às coisas e quando se deu o 25 de Abril, tudo o que havia para trás e que não fosse música de intervenção, era chamado nacional cançonetismo e havia coisas boas, havia bons cantores, bons compositores e havia grandes poetas. Mas sempre se gostou muito da perseguição, da conspiração e do inimigo, sempre se gostou muito disso e de meter nomes às coisas. Esta canção de 67, revisitada hoje é uma canção perfeitamente actual, é uma canção de amor, pode ser vista por aí e no fundo nós apenas imprimimos a nossa dinâmica, aceleramos um bocadinho dentro da nossa visão. Em 1967 havia o flower power, os Beatles e os Rolling Stones, muita droga e muito amor e em Portugal fizemos muito timidamente “O Vento Mudou”.
J.D. – O Eduardo Nascimento ficou contente com a vossa versão do tema?
A.M.R. – Adorou, ele já tinha ouvido outras roupagens desta música mas gostou muito da nossa.
J.D. – António, em jeito de despedida, gostava de lançar uma questão mais abrangente a toda a vossa carreira. Ao longo de todos estes anos, na opinião pública há muita gente que vos ignora e também alguma gente que se recusa a dar-vos o crédito merecido por uma carreira de mais de trinta anos e com tanta meta conquistada. Concorda com isso e em caso afirmativo, porque é que isso se verifica?
A.M.R. – Sabes, há uma coisa em Portugal… Nós temos ali uma praça que é a Praça do Comércio em Lisboa, que tem duas colunas… à frente dessas colunas há outra praça, no meio do rio, que é a praça do Preconceito, de vez em quando nos dias de nevoeiro consegue-se ver a estátua. O preconceito é um bem nacional e se é para estar contra, toda a gente está contra. As pessoas falam e nada se acrescenta. Os UHF atingiram o sucesso logo muito cedo. É natural que ao longo de três décadas nós tenhamos ganho fãs aqui e anti-fãs acolá. Felizmente é natural, muitas vezes as pessoas não estão a favor para estarem contra. Não votam porque gostam, votam para estarem contra e então votam no opositor. Não há escolhas, há empurrões, as pessoas são empurradas para ali ou para acolá, mas isso acho que também faz parte de nós, nunca fizemos nada para mudar isso. Nós só nos últimos 5 anos é que tivemos o apoio do marketing, trabalhámos 25 anos sem marketing, era tudo feito conforme apetecia, agora fazemos, agora não fazemos… às vezes até nos esquecíamos de fazer… No entanto fomos os primeiros a fazer uma série de coisas, por exemplo, fomos os primeiros a fazer uma colecção de t-shirts e outras coisas. Víamos aqueles nomes lá de fora com quem tocávamos a fazer as coisas e fazíamos também. Aprendemos na faculdade das primeiras partes das grandes bandas inglesas ou americanas com quem tocámos e fazíamos também como eles e depois… depois fartámo-nos e fomos fazer outras coisas…
J.D. – Os UHF estavam no centro do mundo…
A.M.R. – O ano de 79 foi muito importante para nós, não só porque lançámos o “Jorge Morreu” e apanhámos o primeiro grande balde de água fria, que foi constatar que ninguém queria passar o disco, até que apareceram uns tipos na rádio a dizer “temos aqui um disco de Rock português” e eu… ”Rock quê???”, só me apetecia enfiar-me por um buraco (risos)… mas seguimos em frente, fizemos as tais primeiras partes que falámos, fomos considerados nalguns casos melhores que a banda estrangeira, caso dos Ramones, colocamos aí algumas reticencias mas é um facto que a critica da época assinalou que os UHF tocaram bem melhor que os Ramones e isso foi em Setembro de 80. Os Cavalos saiem em Outubro do ano anterior. Já andávamos a tocar os “Cavalos de Corrida” há um ano e há uma coisa que acontece no meio disto tudo e que me parece bastante importante. Nós quando chegámos ao sucesso, já não somos apenas uma banda de Almada e aqui leia-se Almada igual a província. Éramos uma banda do país, já tínhamos ido tocar a Bragança, já tínhamos ido tocar a Évora ou às Caldas da Rainha…nós já começávamos a ter uma vida de estrada. Portanto, quando nós chegamos aos “Cavalos de Corrida” em Outubro de 1980, já tínhamos mais de cem concertos realizados, aliás, olha vou-te contar uma história que nunca contei em publico, aproveita…Os UHF tinham de gravar no Verão os Cavalos, na Valentim de Carvalho, mas não conseguíamos gravar, porque o nosso baterista não conseguia gravar no ritmo certo porque nós dávamos quatro concertos por semana. Arranjaram-nos dois dias para gravar, fomos para Paço d’Arcos mas não conseguimos gravar nada, tivemos que parar um mês. Disseram-nos do estúdio, epá voltem mais tarde porque vocês não conseguem, o ritmo está sempre “prá frente e para trás” e porquê? Porque estávamos sempre a tocar ao vivo e nós ao vivo acelerávamos muito (risos), eram concertos de energia pura. Eu gosto muito de gravar, logo depois em Janeiro começámos a gravar o primeiro álbum, “À Flor da Pele”.
O Jornal Dínamo agradece a disponibilidade do Artista António Manuel Ribeiro para esta entrevista que foi concedida ao Jornal Dínamo, realizada por Rui Pinhead e deseja as maiores felicidades para a carreira da banda UHF.
Fotos: David Monge