Manuel Cardoso – Pelas informações que constam do sítio da sua editora, ficamos a saber que reside na Alemanha. Como se adapta uma portuguesa, com todo o seu ser latino, num país tão diferente, entre um povo tão diferente?
Cristina Torrão – Na verdade, a minha vinda para a Alemanha deu-se numa altura em que eu aspirava a mudar de vida. Morava ainda com os meus pais, de maneira que o mudar de país coincidiu com essa “emancipação”, apesar de não ter vindo sozinha, pois casei com um alemão. Quando analiso o meu passado, sinto que, até aos 25 anos, fiz mais aquilo que esperavam de mim, do que o que realmente queria, ou me apetecia, fazer. É claro que o período de adaptação não foi fácil, mas, por outro lado, constatei que o rigor alemão torna aspectos do quotidiano bem mais fáceis. É muito cómodo, por exemplo, uma pessoa ir para a paragem e saber exactamente quando o autocarro surge e quanto tempo demora a viagem, num rigor impressionante, numa cidade de tanto movimento, como Hamburgo. As pessoas são diferentes, sim, mas é uma questão de hábito. E a “frieza” dos alemães vai-se diluindo, as gerações mais novas são mais espontâneas e amigas do convívio. Além disso, não acho que as famílias portuguesas sejam mais unidas, como se costuma dizer, há de tudo, tanto num país, como no outro.
Por acaso, a pessoa mais antipática e rigorosa, daquelas que não perdoam uma falha, que aqui conheci, foi uma galega de La Coruña, dona de uma das escolas de línguas onde leccionei Português a alemães.
MC – Quer fazer-nos uma comparação entre o panorama editorial português e o alemão? Os alemães publicam e lêem mais que nós?
CT – Publica-se muito mais, mas considere que a Alemanha tem 80 milhões de habitantes. E o mercado de língua alemã engloba ainda a Suíça e a Áustria. Nas devidas proporções, o número de publicações deve ser semelhante. O que eu acho é que aqui se publicam muito mais livros informativos (não ficção) sobre todos os assuntos possíveis e imaginários. Em Portugal, traduzem-se mais autores estrangeiros e publica-se mais ficção. Aqui, uma pessoa quer um livro sobre jardinagem e descobre logo umas dezenas, ou até, centenas. O mesmo se passa com todos os temas que imaginemos, seja religião, viagens, medicina natural, psicologia, animais, etc. Se eu quiser ler algo sobre cães, por exemplo, basta-me ir a uma livraria, nem precisa de ser grande, para encontrar, pelo menos, uns 30 títulos diferentes, ainda divididos em subgrupos: educação dos cachorrinhos, treino de cães de caça, informações sobre as raças, doenças caninas, o cão sénior, eu sei lá… E tudo muito actual, nada de livros antigos, com informações ultrapassadas. Além disso, a um preço acessível. Os livros em Portugal são mais caros, sim, e ganha-se menos. Por isso, acho que os alemães estão mais bem informados, têm mais cultura geral. Por outro lado, não me parece que leiam mais clássicos, por aqui também se adora a chamada literatura light.
MC – A Cristina é formada em Língua e Literaturas Modernas. Mas ao ler o seu “D. Dinis” julguei tratar-se de alguém com formação em Psicologia. Quer comentar?
CT – Sempre me interessei por Psicologia e só não tirei esse curso porque tinha de enveredar pela parte de Ciências, a partir do 10º ano, para a qual não me sentia vocacionada, sempre preferi as Letras, apesar de ter sido boa aluna a Matemática. Fiz bem, porque uma coisa é interessar-se por Psicologia, outra é exercer a profissão de psicóloga, duvido que tivesse estofo para isso. Mas leio muito sobre o tema, fascina-me saber porque é que as pessoas são como são e reagem como reagem.
Pegando no caso de “D. Dinis”, a História diz-nos que ele foi um rei sábio e justo e que foi atormentado, na última fase da sua vida, por um filho ingrato, que ousou provocar uma guerra civil contra o próprio pai. Como é que o infante D. Afonso dá um desgosto desses a um pai tão bom, sendo, ainda, filho de uma mulher tão piedosa, que foi canonizada? D. Dinis e D. Isabel estarão, de facto, livres de responsabilidades, isto é, tiveram apenas o azar de ter um filho mau, rancoroso e ciumento? Eu não acredito em acasos, em “azares” desses. Em tudo o que escrevo, dou um grande ênfase às relações entre os personagens. Nada mais me irrita, num romance, do que ler que este ou aquele personagem fez isto ou aquilo, apenas porque sim. Ou porque calhou. Nada do que fazemos é por acaso.
MC – Ironicamente foi com um romance histórico que se projectou o nosso Prémio Nobel, José Saramago. Digo “ironicamente” porque o Romance Histórico é um género, a meu ver, pouco explorado em Portugal. Porquê, na sua opinião? Afinal de contas temos uma história riquíssima…
CT – Concordo: um género pouco explorado, quando há tanta matéria… Penso que poderá ter a ver com a falta de iniciativa dos portugueses. Somos um povo acomodado, que se atreve pouco. Temos aquela ideia de que só alguns eleitos estão autorizados a pegar em certos assuntos, há mesmo quem diga que os historiadores deviam ser as únicas pessoas a escreverem romances históricos (nunca ouvi dizer isso, na Alemanha). Claro que eles têm melhor formação histórica, mas seria preciso aliar esse aspecto ao talento de escrever um romance que “agarre” o leitor. Por outro lado, qualquer pessoa pode pesquisar e informar-se de maneira competente, basta consultar as fontes certas.
Talvez haja também, em Portugal, a crença de que a História é algo muito aborrecido, que só interessa a eruditos. Não há dúvida de que as pesquisas para um romance histórico são exaustivas, é necessária muita disciplina, muita força de vontade. Faltarão, aos portugueses, qualidades destas?
MC – Apreciei especialmente a dimensão humana dos seus personagens e a sua sensibilidade humanística. Será que continuamos, como há 50 anos, a olhar para os nossos personagens históricos como heróis, mais do que como seres humanos?
CT – Esta será também uma das razões porque se escrevem poucos romances históricos, há aquela ideia de que “não se mexe” em certas personalidades. D. Afonso Henriques é visto como um ser especial, não se admite que tivesse tido fraquezas, conflitos, que tivesse tomado decisões erradas, ou que, simplesmente, se tivesse apaixonado, como qualquer outro homem. O mesmo para D. Dinis, olha-se com condescendência para a sua fraqueza pelas mulheres, por exemplo, ao mesmo tempo que se admira a paciência e a tolerância de D. Isabel, que sofria tudo em silêncio. Terá sido mesmo assim? O Manuel e a Paula, que leram o meu livro, sabem que eu dei uma versão um pouco diferente.
Queria, no entanto, chamar a atenção para o facto de que alguns historiadores actuais tentam dar uma dimensão mais humana às personalidades históricas. Notei isso em José Augusto Pizarro, o autor da biografia de D. Dinis (Temas e Debates) nomeadamente no que diz respeito à relação do rei com o filho. E talvez isto resulte da influência dos romances históricos…
MC – Há alguma obra a que possa chamar “o livro da sua vida”?
CT – Não. Mas posso nomear alguns que me marcaram. Emocionei-me muito com “O Meu Pé de Laranja Lima”, quando tinha uns 10 anos, com o livro e com o filme. Impressionou-me a solidão do menino, mas também a sua coragem de imaginar aquelas conversas com um amigo imaginário. Eu não me atrevia a tanto, alguém me disse que isso era coisa de quem não era bom da cabeça…
O livro que mais vezes li é, sem dúvida, “Os Maias” (umas quatro ou cinco vezes). Adoro o poder de observação de Eça de Queirós, aqueles detalhes que tudo dizem (os “cigarros pensativos”, o “papá Monforte entalado na sua gravata”, “a coxa gorda do Dâmaso a estalar nas calças”)…
Refiro ainda dois livros, de Sharon Penman, que li duas vezes (cada um): “The Sunne in Splendour” e “Here be Dragons”. Penso que os romances históricos desta autora americana não estão traduzidos, só existem em Inglês. Foram estes livros que me convenceram a começar a escrever, há cerca de quinze anos. Sharon Penman também dá uma dimensão muito humana às suas personagens. Quando comecei a ler “The Sunne in Splendour” e dei com o rei Ricardo III de Inglaterra, com apenas quatro ou cinco anos, perdido numa floresta, cheio de medo, pensei: é isto mesmo que eu quero fazer com os reis de Portugal! Além disso, depois de ler “Here be Dragons”, não descansei, enquanto não fui ao País de Gales, convenci o meu marido a fazer lá férias!
MC – E quais os seus escritores favoritos?
CT – Eça de Queirós, claro. E gosto muito de um inglês, um pouco anterior a ele, chamado Anthony Throllope (acho, aliás, que Eça se terá baseado um pouco nele). Adorei, também, a ironia de William Thackeray, no seu “Vanity Fair”, assim como a do alemão Heinrich Heine, em “Die Harzreise” (um alemão irónico!). Na verdade, só agora vou à descoberta dos autores portugueses actuais. Quando vim para a Alemanha, comecei a ler literatura inglesa, para não perder o treino desta língua. Depois, comecei com as minhas pesquisas históricas e fiquei sem tempo para a ficção. Mas tenciono ler, em breve, Gonçalo M. Tavares.
MC – Qual o seu maior sonho como escritora? E, já agora, se nos quiser dizer, o sonho da sua vida?
CT – Qualquer escritor/a ambiciona vender muitos livros e eu não sou excepção. Mas estou consciente das minhas limitações, não almejo importantes Prémios Literários. Digo-lhe, no entanto, que não deixarei de escrever, nunca. Acho que é este o sonho da minha vida: não parar de escrever.
Fonte: destante.blogspot.com
Imagens cedidas pelo blog Destante