O passado e o futuro da Arte Contemporânea encontram-se em Elvas 

| A arte contemporânea vai passar por várias cidades do país até 2026, a bordo da exposição “Diante do Tempo”. Um diálogo entre diferentes gerações de artistas, reúne obras históricas e criações novas num roteiro que começou em Elvas e terá paragens em Castelo Branco, Coimbra e Lisboa

Sentado, um homem de bigode descasca lentamente duas batatas para uma panela de pressão a ferver sob uma bilha de gás. À sua frente, um amolador aguça uma tesoura no esmeril que põe a rodar com o auxílio dos pés nos pedais. Todos estes movimentos mundanos e operários são feitos com calma, de forma compassada. A esta experiência visual, acrescenta-se uma sonora, onde de forma hipnotizante e imersiva o som da panela, da roda da bicicleta e dos metais são fundidos com o som de três guitarras.

Tudo isto acontece a oito metros debaixo de terra, sob a abóbada da cisterna de Elvas, durante uma performance artística do colectivo Osso Exótico. Apenas uma pequena fonte de luz ilumina parcialmente os artistas deste colectivo português criado em 1989, composto pelos irmãos André e David Maranha, Patrícia Machás, Francisco Tropa e Manuel Mota. 

Foi assim que, entre muitas palmas dos que assistiam, a obra ‘Kalliope’ deu início a uma tarde sensorial de Arte Contemporânea na cidade raiana.

 

Um passado tornado presente pela memória

António Cachola

Foto: fb politecnico de portalegre

É um Sábado, dia 12 de Abril de 2025. Um enxame de pessoas estranhas à cidade, de roupas que os distinguem e ao mesmo tempo os une na mesma colmeia, caminham da cisterna de Elvas em direcção a um outro edifício histórico. O Museu de Arte Contemporânea de Elvas (MACE) foi em tempos o hospital da cidade, no emblemático edifício da Misericórdia. A adaptação da construção hospitalar para um museu foi uma exigência de António Cachola, o impulsionador do projecto museológico aberto desde 2007.

A iniciativa desta exposição, todavia, partiu da filha de Cachola. “Foi a Ana Cristina Cachola que me provocou a fazer esta exposição aqui no MACE”, conta em entrevista Vera Appleton, fundadora da Associação Cultural Appleton, que se dedica à promoção da Arte Contemporânea. 

Curadoria da mesma, “Diante do Tempo” é uma exposição que contém várias exposições em si e propõe uma reflexão sobre a passagem do tempo na produção artística contemporânea. A inspiração é uma obra do filósofo e historiador de arte Georges Didi-Huberman, que explora a relação entre o tempo e a história da arte no livro que deu nome à mostra de arte.

Vera Appleton

Foto: facebook appletonassociacao

Para o passado se tornar presente de novo, Appleton decidiu revisitar obras de artistas que marcaram a história da associação que fundou a 10 de Abril de 2007. Explica que “só tendo 18 anos de experiência e convivência com artistas e obras é possível construir uma exposição deste género, em que há esta revisitação, este resgatar de obras”.

Com essas obras revisitadas, traça o passado da Arte Contemporânea com artistas que escolheu de forma “intuitiva”, partindo das suas próprias memórias. “Trazer a maquete do Michael [Biberstein] era um sonho quase”, contou a directora da associação lisboeta, um sonho que foi concretizado. Na sala onde a obra de Biberstein está exposta, a escala da maquete tridimensional da Igreja de Santa Isabel permite ao visitante entrar dentro do modelo do artista americano-suíço, falecido em 2013. 

Escultura, desenho, pintura, fotografia, cinema, vídeo-arte, instalação, performance sonora, são todos meios pelos quais a arte encontrou a sua expressão nas doze salas que fazem “Diante do Tempo”. 

 

Uma ideia de futuro 

Grande parte do projecto expositivo é composta por obras anteriormente apresentadas e agora reapresentadas sob um novo olhar, a par de criações inéditas. É o caso do corredor onírico de Sara Mealha, uma instalação onde a luz de múltiplos candeeiros, refletida por espelhos, projecta sombras nas paredes deste sítio de passagem para as restantes salas.

Mealha é o nome mais jovem da exposição, representando uma geração mais nova da Arte Contemporânea. Para a jovem de 30 anos, o futuro desta área não parece diferente do presente. “Ainda há a falta de muitas condições, é um desafio viver apenas da arte”, explica. Por isso, muitos artistas, como a própria, levam “uma vida dupla”, uma dedicada à arte e outra para pagar as contas. 

O futuro da Arte contemporânea em Portugal foi um tema falado no discurso de inauguração da exposição, onde Appleton destacou a importância de construir uma verdadeira rede nacional de colaboração. Por agora, o exemplo mais próximo é a Rede Portuguesa de Arte Contemporânea (RPAC) que, em conjunto com a Direcção-Geral das Artes (DGArtes), financiou esta exposição e permitiu a parceria entre os vários espaços por onde a exposição vai passar.

A colecção vai estar em Elvas até 5 de Julho. A partir de 1 de Novembro e até ao fim do ano vai estar no Centro de Cultura Contemporânea de Castelo Branco. Em 2026, volta só em Março, mês onde vai estar por pouco tempo em Lisboa, para depois seguir para o Centro de Artes Visuais em Coimbra, onde ficará de 21 Março a 19 Abril

 

“Se estás desapontado, a culpa é tua”

Apesar do percurso ser escolha do visitante, é instintivo começar no andar de baixo, depois subir ao primeiro andar e terminar o percurso na sala de Susana Mendes Silva (numa colaboração com Jari Majmaki), diferente das outras por estar “fechada” por cortinas. Antes de entrarmos, somos avisados que a sala está completamente às escuras. Enquanto os olhos se tentam adaptar à ausência de luz, ouve-se um ruído alto, o barulho de um drone. Depois, sem aviso, a sala ilumina-se num ápice e uma voz feminina e robótica enuncia: “If you are disappointed, its your fault” (“Se estás desapontado a culpa é tua”). 

Com a mesma rapidez com que se acenderam, as luzes desligam-se de novo, oferecendo apenas um pequeno vislumbre do espaço que os nossos olhos não conheciam nem tiveram tempo de absorver.

Fotos: Francisco Santos

Jornal DÍNAMO
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